30/05/2012 - Sonia B. Hoffmann.
É corriqueiro o dito popular "em terra de cego, quem tem olho é
rei". No entanto, uma análise realista da situação nos mostra claramente
um equívoco nesta afirmativa. É mais fácil que torne-se um escravo do
que propriamente um rei.
Esta condição é cronificada, se for uma pessoa castradora, de
personalidade servil ou adepta do pensamento de que os deficientes
visuais são incapazes e sem possibilidades para providenciarem até mesmo
a satisfação de necessidades e vontades primárias no que diz respeito
aos cuidados pessoais e à administração doméstica.
Há muitos pais e parentes que, desde a infância da pessoa cega ou com
baixa visão, colocam-se na posição de cuidadores ou tutores
onipresentes, enredando-se na vitimização e causando, com esta postura,
um mal estar no relacionamento parental e um sentimento de piedade ou de
indiferença nas outras pessoas.
Por sua vez, em função deste comportamento do outro social, é
possível que a pessoa com deficiência visual também desenvolva
sentimentos egoicos fragilizados ou super fortalecidos que, ao longo do
tempo, provocam o adoecimento das inter-relações e até seu isolamento
social. Ao sentirem-se reféns, é provável que muitos Inconscientemente
tornem-se submissos, insatisfeitos, ou agressivos com aqueles que julgam
responsáveis por semelhante condição.
José Espínola Veiga , em seu livro A vida de quem não Vê, ilustra
brilhantemente a condição de sequestradores de vivências que muitos pais
e parentes adotam em relação à pessoa cega ou com baixa visão:
"O filho vai de 3 para 4 anos, e nada se
lhe ensina. - Coitadinho, deixa! ... Mexem-lhe o café, picam-lhe o pão,
põem-lhe a comida na boca, descascam-lhe a banana, deixam-no que meta a
mão no prato. - Coitadinho! Já basta o que ele sofre!... E a criança não
sofre nada com a falta da vista ... Sofrerá, sim, mais tarde, a
consequência dessa educação mal dirigida."
Vários grupos familiares são condescendentes e mesmo irresponsáveis
na orientação e instrumentalização de pessoas cegas com os conhecimentos
e informações sobre o desempenho e o modo de realização de atividades
da vida diária, afrouxando comportamentos disciplinadores e dispensando a
aquisição de hábitos saudáveis de condutas para seus filhos, irmãos ou
parentes com deficiência visual. Com isto, parecem esquecer que não
estarão eternamente disponíveis, que seus parentes com deficiência têm o
direito de construírem-se por vias alternativas de desenvolvimento e
que o outro social não poderá ou terá vontade de responsabilizar-se pela
solução de problemas criados pela imprudência ou pela superproteção
alheia.
Como profissional da área da educação e da reabilitação de pessoas
com deficiência visual, ouvi muitos depoimentos e relatos de pessoas que
enxergam sobre seus sentimentos diante do comportamento de muitos
cegos, enfatizando principalmente sua maneira de alimentar-se, o seu
vestuário e a negligência com sua aparência pessoal. Muitos afirmaram
que evitam almoçar, jantar ou fazer qualquer tipo de lanche junto com
uma pessoa cega ou com baixa visão, pois suas experiências foram
lastimáveis.
Alguns disseram do seu sentimento de pena ao verem pessoas cegas
vasculhando no prato ou na mesa pedaços e restos de alimentos com suas
mãos, sem utilizarem faca, garfo ou colher quando necessário e como
previdência. Muitos comentaram sobre o sentimento de impotência ao verem
que uma pessoa cega pode levar, com frequência, o garfo ou a colher
vazia à boca porque os alimentos se desprenderam ou caíram do talher
durante o trajeto. Outros comentaram sobre a repugnância sentida ao
verem pessoas cegas ou com baixa visão levando à boca pedaços enormes de
alimentos, mastigarem de "boca aberta" e sem usarem adequadamente sua
arcada dentária, deixarem alimentos caírem da boca, falarem de "boca
cheia" ou fazerem barulhos ou ruídos excessivos na mastigação e ingestão
de líquidos ou alimentos cremosos.
Relativamente ao vestuário, muitas pessoas relatam que percebem haver
uma certa negligência ou descaso da pessoa cega com a combinação de
cores, texturas, adequação e limpeza da roupa, do calçado e de possíveis
acessórios. O mesmo afirmam sobre os cuidados com a aparência de muitos
cegos, especialmente quanto à limpeza e corte das unhas, escovação de
dentes, limpeza do nariz e da prótese ocular, quando presente.
No entanto, pessoas cegas também relatam sobre os seus sentimentos na
realização de atividades rotineiras e muitas afirmam que evitam
alimentar-se em público ou participarem de encontros e festas, pois
sentem-se inseguros, envergonhados e que não estão preparados para
conviverem socialmente com outras pessoas que não sejam os pais, os
irmãos, parentes ou cônjuges. Referem,também, que evitam a
diversificação de cores e texturas em seu vestuário, pois temem o
ridículo ou acharem-se "descombinantes", mesmo que a moda nem sempre
esteja apontando tal preocupação. Esta moda, muitas vezes, é compassiva
com aqueles que enxergam, mas pode ser perversa com aqueles que não
veem.
Dificilmente, entretanto, são encontrados familiares, amigos ou
professores que mantêm uma conversa franca e adequada com a pessoa com
deficiência visual sobre sua maneira de alimentar-se, vestir-se ou
cuidar da sua aparência. Da mesma forma, dificilmente são encontradas
pessoas cegas ou com baixa visão que aceitam estes comentários e estas
informações com naturalidade porque acostumaram-se ou foram acostumadas à
displicência ou descaso, melindrando-se ou magoando-se diante da menor
contrariedade.
Contudo, já é hora de todos nos alertarmos para a inclusão do
respeito, da sensibilidade e da generosidade em nossas inter-relações e,
urgentemente, adquirirmos o hábito de sairmos da nossa posição e nos
percebermos na condição do outro, exercitando dificuldades,
possibilidades, papéis e funções - sejam elas de reis ou de escravos.
Permitida a divulgação e a reprodução deste
material desde que citada a fonte: Diversidade em Cena.
Texto disponibilizado no jornal Contraponto, da Associação dos Ex-alunos do Instituto Benjamin Constant- Maio de 2012.
Texto disponibilizado no jornal Contraponto, da Associação dos Ex-alunos do Instituto Benjamin Constant- Maio de 2012.
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