Imagem
publicada – a imagem de um homem, negro, norte-americano, de nome
Henry, que faz parte de um documentário sobre Alzheimer e a Música,
narrado por Oliver Sacks. Este homem me fez lembrar com emoção do que
aprendi sobre a força da música em nossos corações e mentes. No vídeo
trailer do documentário Alive Inside, após ouvir uma música de seu
passado, Henry sai de sua apatia e posição deprimida para um
renascimento (Veja link abaixo do texto). Era esse renascer do brilho
nos olhos como um passe de mágica que desejei um dia: como todos os
filhos de pessoas com Alzheimer, em especial uma mãe, que eles/elas
retornem a nos reconhecer... Porém não somos as músicas de seu passado.
“Viver
pelo menos até conhecer todos os costumes e acontecimentos do homem;
estender toda a vida passada – já que a futura não nos é dada;
concentrar-se antes de diluir-se; merecer ter nascido; pensar no
sacrifício que cada respiração custa a outros; não idealizar o
sofrimento, embora se viva dele; guardar para si apenas o que não se
deixa adiante, até que isso se torne maduro para outrem e se dê; odiar a
morte de qualquer outro tanto quanto a própria; um dia fazer as pazes
com tudo, nunca com a morte.” (Elias Canetti, Sobre a Morte)
Estender
toda a vida passada pode vir a ser uma das mais importantes ações que
teremos de realizar com nossas mães. E com elas fazer nossas pazes
avançando contra a Morte...
Este texto é uma homenagem àquelas
mães que, vivendo apenas do passado, não mais reconhecerão seus filhos
no presente. Elas vivem e convivem com alguma demência. Porém como as
outras nunca deixarão de sua uterina e prolífica capacidade de
fertilizar a Terra...
Em suas mentes ressoam apenas belas e
velhas canções ou músicas...
Tenho pensado muito em minha mãe. Talvez
tentando refletir sobre o que tentei aprender-ensinar por muitos anos: é
preciso aprender a deixar morrer em nós os nossos mortos. Não
retornar/regredir ao útero e avançar para a Dona Morte, dizia outro
Henry, Henry Miller.
A minha “uterina” mãe me retornou a mente
nos últimos tempos muitas vezes. Não foi tristemente ou com pesar. Era a
lembrança de seu sorriso comigo ao colo ainda um garotinho alegre lá
nas Minas Gerais. A memória dela retornou, intensamente, ao assistir o
vídeo com o Henry.
Publiquei e difundi, recentemente, este vídeo
sobre a relação entre Alzheimer e a Música. Trata-se de um trabalho
desenvolvido nos EUA, onde pessoas com demência passaram a “despertar”
seus cérebros e mentes com “velhas” músicas. Através do trailer do filme
Alive Inside mostra a extraordinária terapia musical feita com
pacientes que sofrem/vivem com o Alzheimer ou outros tipos de demência.
Sim,
há muitos anos já experimentei na prática o quanto a música pode nos
manter VIVOS por dentro. Sim já havia comprovado o efeito Mozart. A
música pode nos redimir, pode nos incentivar, pode nos reorganizar e
pode até nos tirar de algum sofrimento “inside”...
Assim ocorreu
comigo e a minha filha Luana (1994), que ao nascer ficou quase um mês
em uma incubadora e lhe dei Mozart de “terapia intensiva”, com um
pequena caixa de som ligada a um mini toca cds. E as suas convulsões
diminuíam.
Apesar do ceticismo e a visão “científica” dos
neurologistas, à época. Assim nós aguentávamos as muitas horas e os
ruídos de aparelhos de sobrevivência daquela UTI neonatal. O tempo
escorria com menos dor psíquica. Era a minha segunda experiência
iatrogênica. Mais um filho com paralisia cerebral no meu mundo.
Um
pouco desta experiência pessoal foi levada para a minha Clínica.
Experimentei, anos depois (1990), a introdução de músicas na
avaliação/tratamento de pessoas com diagnóstico de Alzheimer. E mais uma
vez a minha mãe retornava a minha mente. Ela é que me “ensinou” o gosto
pela música como paixão.
Porém o mais importante é que ela me
ensinou também que poderíamos espantar nossos males com o canto. E este
ditado foi colocado em minha prática com os meus “pacientes”. Um tempo
que as dores e as perdas de mobilidade me afastaram. E, por enquanto,
não esqueci.
Uma das músicas prediletas e autobiográficas da Dona
Ditinha (esse era seu apelido carinhoso, na redução de Ana Benedita) foi
a que mais me marcou nessa experiência. Talvez, imagino hoje, se
escutada por ela lhe reanimasse algumas belas lembranças afetivas.
Tratava-se
de uma musica cantada por Carlos Galhardo. Os mais novos nem devem
saber de sua existência na música popular brasileira. É dele a
interpretação original da música “Fascinação”, a mesma que depois se
imortaliza na voz de Elis Regina: - “Os sonhos mais lindos sonhei –
de quimeras mil um castelo ergui”...
Só que eu não tive a
chance de aplicar essa ‘”musicoterapia” para a minha própria doadora de
vida e música. Minha mãe recebeu o diagnóstico de demência de forma
tardia, pois a sua idade precoce para o quadro não era, à época, um fato
corriqueiro para a neurologia.
Eram os anos 80, onde ainda se
confundia quadros mentais, demenciais, vasculares e todos eram
enquadrados como ‘’arteriosclerose’’. A visão ainda obtusa da medicina
não via as nuances entre os muitos tipos de demência ou quadros
neurodegenerativos. Todos estavam “incluídos”, sem exceção na ideia de
“morte neuronal definitiva”.
Hoje já podemos, segundo notícias,
predizer uma demência até 10 anos antes dos primeiros sintomas, como a
molécula PiB» (composto B de Pittsburgh) anunciada pela Universidade de
Coimbra (Portugal). Hoje avançamos nas biotecnologias e na farmacologia
para muitas surpreendentes descobertas. Quem sabe que caminhos ainda
percorremos?
Foi-se este tempo que tratou a Doença de Alzheimer e
outras demências como um processo neurodegenerativo que só recebia
diagnóstico pós-morte. A máxima era que não havia medicação ou
tratamentos para estas “escleroses” dos velhos.
Porém a Dona
Ditinha estava no ápice de sua maturidade quando seu quadro se
apresentou. Nem chegara aos seus 60 anos. E sua condição de rápida perda
de memória, decrepitude física, distúrbios comportamentais, e,
principalmente, a depressão emocional foram confundidos com um quadro
apenas mental.
Eu, recém-formado em medicina, não pude ter a
experiência que hoje já acumulei. Mas insisti sobre seu diagnóstico.
Porém não basta que tenhamos um conjunto de sintomas e determinemos um
nome para um sofrimento humano. É preciso alguma forma de esperança ou
de promessa de pró-cura.
Quem me dera ter sido afetado, na época
por esta minha experiência com a música e o Alzheimer. Não vivenciei o
que depois só aprendi na prática e na pele. Escrevo hoje, mesmo nas
frias e dolorosas madrugadas, embalado por música clássica.
Os
sons de Corelli, Bizet, Chopin, Vivaldi, Mozart, Beethoven, e outros
gênios estão me ajudando a organizar estas ideias, palavras, afetos e
lembranças. Também tiram o meu foco da dor física ou psíquica. Lançam-me
em outras galáxias do meu minúsculo universo subjetivo. Re-animam.
Esta
é a música que desperta o Henry no vídeo, que ao lembrar-se de seu
predileto compositor ,Cab Calloway, o“desperta”. Reanima em seus olhos e
nas palavras o que desejei ter para presentear a todas as mães: a
vontade de renascimento, de re-viver, aquilo que só os úteros entendem.
Lá neles há os primórdios de nossas noções musicais com os sons
placentários e do coração, assim como outros do corpo materno.
E,
como Henry, eu posso então dizer que a música me dá o ‘sentimento e o
sentido do amor’.
Qual é o melhor presente a ser dado às mães que
não conseguem mais a lembrança de quem são os seus filhos? Talvez a
melhor homenagem a lhes prestar seja lhes dar suas músicas prediletas.
E, também, mesmo que estejam ausentes para nós, que cantemos suas
canções, inclusive as que ouvimos para nos embalar o sono.
Espero
que muitas famílias, em especial filhos e filhas, possam compreender a
importância de levar seus familiares, com quadros semelhantes, em
direção dos seus sons primordiais e antigos. Uma “velha” melodia, um
velho long-play, um cassete jogado no fundo do armário, poderá
ressuscitar milhões de neurônios adormecidos.
E, não retornando
ao útero caminhamos todos e todas em direção à Morte. Há, porém que
celebrar aquelas que nos deram essa chance de viver intensa e
criativamente essa jornada. Há mães que superam quaisquer obstáculos.
Não
devemos olhar para nossas mães, seja no ontem ou hoje, como vítimas, ou
como perdas, com luto antecipado. Vejam, por exemplo, a notícia de uma
mãe que, para além de seus filhos com deficiência, encontra seu próprio
tempo para o trabalho e para a prática do triatlo. Ela não corre da vida
e sim pela Vida, inclusive a dela.
Não precisamos transformar
nossas experiências com um familiar em um penoso cuidar, ou pior um
culposo e triste movimento de negação de nossas próprias vidas. Daí
decorre as falsas “dedicações exclusivas”, ou melhor, excludentes e
penalizadas.
Não entramos na sessão errada e nem no filme que não
queríamos assistir. Esta é uma experiência vital para os que
descobriram recentemente um parente ou uma mãe com este diagnóstico.
Vejam a bela campanha desenvolvida em Israel. Precisamos de um pouco
dessa visão compartilhada do que é se sentir desorientado, confuso e sem
memórias.
De minha mãe Ana fica sua lembrança musical. Ana, que
apesar do nome nunca trabalhou com a negação da vida, sempre nos
estimulou para sua afirmação. Dela vêm os afetos e encontros alegres e
gosto pela música.
Desde uma orquestra como Ray Conniff até uma
sinfonia de Mozart, passando pela música popular brasileira. Eis minha
herança, são os seus legados vitais. Poderão, talvez, ser um dia também
minhas únicas lembranças afetivas?
Lamento que não tenha
aplicado com ela o exercício da paz através da música para os que vivem
na desorientação do tempo e do espaço, com vagas lembranças de quem eram
e de quem são os seus filhos. Mas tenham certeza de que ela
conseguiu-me musicalizar para a vida. E eu desejo que todos sejam
contaminados pelo musi-cartografar as nossas existências fugazes.
À
MINHA, À SUA, A TODAS AS MÃES O MELHOR “PRESENTE”, PARA ALÉM DAS FLORES
E PRESENÇA, UM POUCO DE MÚSICA E ENCANTO, independente do que nos
lembramos, ou elas se lembrem de nós....
Autor: Jorge Márcio
Fonte: http://infoativodefnet.blogspot.com.br/2012/05/maes-alzheimer-e-musica.html
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