Uma história de lutas
Conheça Izabel Maior, uma mulher que adquiriu deficiência física na juventude, venceu os obstáculos e chegou ao Congresso
Por
Marina Miranda / Foto Agência Brasil
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Médica,
professora e ativista. A incansável Izabel Maior, ex Secretária
Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, tem
um currículo extenso. A carioca que conheceu o bonde de São
Januário, subiu em árvore e andou de bicicleta em pleno Rio de
Janeiro dos anos 1950, se recorda com carinho da época de aluna no
Instituto de Educação (hoje, Instituto Superior de Educação do
Rio de Janeiro), à Rua Mariz e Barros, no bairro da Tijuca. Foi lá
que se formou professora primária. Nesse período, era atleta do
Clube de Regatas Vasco da Gama. "Sou vascaína! Fui nadadora
infanto-juvenil. Não era um talento muito grande, mas dava para
subir ao pódio."
De
repente, a professora decidiu: seria médica. Durante a preparação
para entrar no curso de medicina, conheceu um rapaz. "No curso
pré-vestibular conheci um colega, que se sentava atrás de mim. Ele
era muito inteligente e terminava os exercícios de física
rapidamente, e isso me chamou a atenção." Uma gripe forte,
duas semanas de cama e o cavalheirismo de repassar a matéria
perdida: este foi o início de uma amizade que virou namoro, no
primeiro ano de medicina e, casamento, nove anos depois. Claro que o
fato do então amigo Cláudio Maior ter passado em primeiro lugar na
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) contou pontos na lista
de Izabel, que sempre foi boa aluna.
De quase médica à paciente
No
quarto ano de medicina, a estudante começou a sentir constantes
sinais de fraqueza e cansaço. "Às vezes, tropeçava quando
corria e comecei a notar que algo diferente acontecia com a minha
perna direita." Com recursos escassos na época - não existia
ressonância em 1976 - os exames de Izabel indicavam que ela teria um
tumor na medula cervical. "Fui internada para fazer uma espécie
de punção, uma agulha entre as vértebras e o pescoço, para ver se
o que tinha era líquido ou sólido. A punção não foi suficiente e
sugeriram uma cirurgia de descompressão. A operação foi um
fracasso absoluto, um erro médico, sem nenhuma dúvida." A
aluna de medicina de repente estava sem os movimentos das pernas e
dos braços.
"O
que tinha era um leve prejuízo da perna direita quando corria, mas
acabei sofrendo uma lesão parcial na medula, deixando-me sem os
movimentos dos membros. Se não fosse pela sucessão de erros, não
seria uma pessoa com deficiência", observa em tom duro. No
Brasil, segundo ela, o diagnóstico foi de tumor cancerígeno e nos
EUA, não foi conclusivo.
Depois
da cirurgia, Izabel foi encaminhada para a radioterapia. "O
cirurgião entrou no quarto, quando estava sozinha, chegou perto de
mim e disse: "Olha, o seu tumor era muito grande e não
conseguimos tirar, mas uma jovem sobreviveu fazendo radioterapia",
revela. "Imagine, foi assim que eu soube de tudo. Um desastre
total", complementa.
A
tragédia tomou proporções maiores por conta da mãe, que estava
com câncer e quase não pôde acompanhá-la durante o processo de
reabilitação, assim como o pai, internado por conta de uma úlcera
logo no início do seu tratamento. "Foi uma época muito ruim da
minha vida. Hoje, falo disso com tranquilidade, mas imagine, com 22
anos ninguém está preparado." Uma cena do tratamento ficou
marcada na lembrança de Izabel: "Estava no hospital, um
marimbondo entrou no quarto.
Fiquei
apenas observando-o e aquilo foi muito significativo porque o inseto
não podia me fazer nada. Mesmo que me ferroasse, não iria sentir",
relembra.
A
ex-secretária diz ter se mantido firme, apesar da gravidade da
situação. "Não acreditei que iria morrer, o que me ajudou
muito. Isso, somado ao carinho da família e dos meus colegas."
O curso foi concluído com o auxílio dos colegas de sala, que
repassavam o material de aula, e pelo tempo de trabalho como
"acadêmica clandestina" em plantões de obstetrícia e
emergência nos primeiros anos de faculdade que, no final, a ajudaram
a cumprir os requisitos práticos."Consegui concluir o curso com
a ajuda dos colegas e com o apoio do Cláudio, que não me abandonou.
Os relacionamentos acabam normalmente,mas no meu caso, não",
ressalta
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Passado
o baque inicial, a ficha caiu, em 1977, quando Izabel foi transferida
para a Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação (ABBR),
instituição fundada inicialmente para tratar pacientes com pólio,
depois transformada em um grande centro de reabilitação de pessoas
com lesão medular. "No primeiro momento, o que passa pela sua
cabeça é que a vida acabou. O clique foi vindo aos poucos, à
medida que escapei, que fui recuperando movimentos e meu pai
conseguiu me acompanhar". A mãe, embora distante, também teve
papel importante na reabilitação. "Minha mãe ficou uma noite
comigo, com muita dificuldade, ela já sabia que não ia ter muito
tempo de vida, a gente não dizia, mas ela sabia. Disse: "Mãe,
quem tem de morrer sou eu, que não sei o que vou fazer da minha
vida." Então, ela disse: "Você tem cabeça." Izabel
encarou aquilo como uma ordem, na hora doeu, afinal o que se pode
fazer com a cabeça, sem o corpo? Mas, o que ela quis dizer foi: "Use
o que você tem, não abandone seus projetos de vida."
Reviravolta
O ano de 1977 foi marcado pelo falecimento da mãe, em abril, e pelo retorno dos movimentos, em maio, quando passou a usar uma bengala para se locomover. Foi também neste período que Izabel descobriu-se com talento para reabilitar corpos e mentes. Em vez de ser acompanhada por um psicólogo, passou à coordenadora dos pacientes em terapia da ABBR. Paralelamente deu aulas para os funcionários que não eram suficientemente alfabetizados e acabou, sem perceber, caindo de paraquedas no mundo das políticas públicas e do movimento pelo direito das pessoas com deficiência. "Os pacientes ficavam internados muito tempo, o mundo lá fora não era hospitaleiro. Em compensação estava nascendo a consciência do movimento das pessoas com deficiência e peguei essa efervescência com aqueles que estavam na reabilitação e com os funcionários."
Em
julho do mesmo ano, Izabel pediu alta para terminar o curso de
medicina. "Em 1978 consegui me formar com a minha turma".
Retornou à ABBR, desta vez para fazer residência. No mesmo período,
fez curso de Especialização em Medicina Física e Reabilitação da
Escola Médica de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade
Católica (PUC RJ). "A consciência surge aos poucos e de
repente você percebe que pode fazer algo, ser uma ponte entre os
profissionais e as pessoas, e foi isso que me propus a fazer." A
médica levou mesmo o papel a sério. O mundo não hospitaleiro teve
de engolir uma mulher ávida pela luta. Ela atuou na Associação dos
Deficientes Físicos do Estado do Rio de Janeiro (ADEFERJ); foi
coordenadora do Programa Saúde Integral da Pessoa Portadora de
Deficiência (SIADE), da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de
Janeiro; é autora do livro pioneiro em língua portuguesa
"Reabilitação Sexual de Paraplégicos e Tetraplégicos",
editado em 1988 (sua tese de mestrado em Medicina Física e
Reabilitação, defendida na UFRJ); viu a inauguração do teatro
Clara Nunes, o primeiro espaço com acesso para visitantes com
deficiência, que teve os pacientes da ABBR como convidados de honra;
tirou carteira de motorista; participou de quatro diretorias do
Centro de Vida Independente (CVI); fez parte da ONG Rehabilitation
International (da qual foi vice-presidente para a América Latina de
1996 a 2000); tornou-se professora da Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro (especialidade de fisiatria) e, neste mesmo período, em
1997, passou por mais uma prova:quando voltava de um evento da ONU,
em Nova York, caiu no aeroporto e fraturou o joelho. A queda a
impediu de voltar a andar, o que não foi suficiente para segurar sua
sede por transformação. Ela deixou de atender os pacientes, mas
tornou-se uma das mais novas professoras a dar apoio à Coordenadoria
Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência
(CORDE), órgão do qual foi coordenadora, e que em 2009 ganhou
status de Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa
com Deficiência e teve Izabel como secretária até o fim de 2010.
Seu
grande desafio na CORDE foi impulsionar o decreto de acessibilidade.
"Já existiam as leis, mas sem o decreto não tinham
finalidade", conta. À frente da coordenadoria, Izabel foi
indicada pela Secretaria Especial de Direitos Humanos para acompanhar
os trabalhos de elaboração da Convenção da ONU sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência. Ela garante nunca ter passado por
injustiças ou dificuldades durante seu período na CORDE ou
Secretaria. "Na verdade, o fato de estar na cadeira de rodas
fazia a diferença. A presença de alguém como eu gerava mudanças
por ter que haver preocupação com a acessibilidade."
Porém,
enfrentou obstáculos como as insatisfações partidárias, por não
pertencer a nenhum partido, embora seu cargo fosse considerado
político. Hoje, Izabel tem certeza de continuar sua luta, seja
ocupando algum cargo ou simplesmente como integrante em instituições.
Ela acredita que há muito a fazer nas cidades interioranas, onde as
questões de acessibilidade ainda estão mais atrasadas em comparação
aos grandes centros. "Temos de brigar pelos nossos direitos, mas
vejo o futuro com otimismo."
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